"Um
dos nossos assinantes nos escreve de Wiesbaden:
“Senhor,
eu estudo o Espiritismo cuidadosamente em todos os vossos livros e, malgrado a
clareza decorrente, dois pontos importantes não parecem bem explicados aos olhos
de certas pessoas. São eles: l.º - as faculdades hereditárias; 2º - os
sonhos.
“Com
efeito, como conciliar o sistema da anterioridade da alma com a existência das
faculdades hereditárias? Entretanto elas existem, embora não de maneira
absoluta. Diariamente elas nos chocam na vida privada. Também vemos, numa ordem
mais elevada, os talentos sucedendo aos talentos, a inteligência à inteligência.
O filho de Racine foi poeta. Alexandre Dumas teve como filho um autor ilustre.
Na arte dramática, vemos a tradição de talentos numa mesma família e na arte da
guerra uma raça, como a dos duques de Brunswick, por exemplo, fornecendo uma
série de heróis.
“A
inépcia, o vício, o próprio crime também conservam sua tradição. Eugène Sue cita
famílias onde várias gerações passaram sucessivamente pelo assassínio e pela
guilhotina.
“A
criação da alma por indivíduo explicaria ainda menos essas dificuldades, bem o
compreendo, mas há que confessar que tanto uma doutrina quanto a outra se
prestam aos golpes dos materialistas, que não veem em todas as faculdades mais
que uma concentração de forças nervosas.
“Quanto
aos sonhos, a Doutrina Espírita não concilia bem o sistema das peregrinações da
alma durante o sono com a opinião vulgar que o torna simples reflexo das
impressões percebidas durante a vigília. Esta última opinião poderia parecer a
verdadeira explicação dos sonhos, ao passo que a peregrinação seria apenas um
caso excepcional.”
(Seguem-se vários exemplos em apoio).
“Que
fique bem entendido, senhor presidente, que não pretendo fazer aqui nenhuma
objeção em meu nome pessoal, mas parece-me útil que a Revista
Espírita se ocupe dessas questões, ainda que seja para fornecer os meios de
responder aos incrédulos. Quanto a mim, sou crente, e busco apenas a minha
instrução.”
A
questão dos sonhos será examinada posteriormente, em artigo especial. Hoje só
nos ocuparemos da hereditariedade moral, deixando que dela tratem os
Espíritos, limitando-nos a algumas observações preliminares.
Diga-se
o que se disser a respeito, os materialistas não ficarão convencidos, porque se
não admitem o princípio, não lhe admitem as consequências. Antes de tudo seria
necessário que se tornassem espiritualistas. Ora, não é por aí que se deve
começar. Assim, não nos podemos ocupar com suas objeções.
Tomando
como ponto de partida a existência de um princípio inteligente fora da matéria,
por outras palavras, a existência da alma, a questão é saber se as almas
procedem das almas ou se são independentes.
Cremos
já haver demonstrado, em nosso artigo sobre Os Espíritos e o
Brasão publicado no mês de março último, a impossibilidade da criação de
alma por alma. Realmente, se a alma da criança fosse uma parte da do pai,
deveria ter sempre as suas qualidades e imperfeições, em virtude do axioma que a
parte é da mesma natureza que o todo.
Ora,
a experiência todos os dias prova o contrário. É verdade que se citam exemplos
de similitudes morais e intelectuais que parecem devidas à hereditariedade, de
onde seria necessário concluir que tivesse havido uma transmissão. Mas, então,
por que essa transmissão não se dá sempre? Por que vemos, todos os dias, pais
essencialmente bons, ter filhos viciosos e vice-versa? Como é impossível fazer
da hereditariedade moral uma regra geral, é necessário explicar, com o sistema
da recíproca independência das almas, a causa das similitudes. Isso poderia ser
no máximo uma dificuldade, mas que não teria como pressuposto a doutrina da
anterioridade da alma e da pluralidade das existências, visto que essa doutrina
está provada por centenas de fatos concludentes, e contra os quais é impossível
levantar objeções sérias.
Deixemos
que falem os Espíritos que tiveram a bondade de tratar do assunto.
Eis
as duas comunicações que a respeito obtivemos:
(Sociedade Espírita de Paris, 23 de maio de 1862
Médium: Sr. D’Ambel)
Já
foi dito muitas vezes que não havia necessidade de erigir um sistema sobre
simples aparências. É um sistema dessa natureza o que deduz das semelhanças
familiares uma teoria contrária àquela que vos demos da existência das almas
anteriormente à sua encarnação terrestre.
É
verdade que muitas vezes elas jamais tiveram relações diretas com os meios e com
as famílias nas quais se reencarnam. Já vos repetimos muitas vezes que as
semelhanças corpóreas são devidas a uma questão material e fisiológica
absolutamente independente da ação espiritual e que, quanto às aptidões e gostos
semelhantes, estes resultam, não da procriação da alma por outra alma já
nascida, mas porque os Espíritos semelhantes se atraem. Daí as famílias de
heróis, ou as raças de guerreiros.
Admiti,
pois, em princípio, que os bons Espíritos escolham de preferência para sua nova
etapa terrena o meio onde o terreno já esteja preparado e a família de Espíritos
adiantados, onde têm certeza de encontrar os materiais necessários ao seu
progresso futuro. Admiti, igualmente, que os Espíritos atrasados, ainda
propensos aos vícios e aos apetites dos brutos, fujam dos grupos elevados, das
famílias moralizadas, e se encarnem, ao contrário, onde esperam encontrar meios
para satisfazerem às paixões que ainda os dominam. Assim, pois, em tese geral,
as semelhanças espirituais existem porque os semelhantes atraem os semelhantes,
ao passo que as semelhanças corpóreas se devem à procriação.
No
entanto, é preciso acrescentar o seguinte: Muitas vezes nascem em famílias
dignas, em todos os sentidos, do respeito de seus concidadãos, indivíduos
viciosos e maus que aí são enviados para servirem de prova àquelas. Por vezes,
ainda, eles vêm por vontade própria, na esperança de saírem dos hábitos
inveterados onde até então se arrastaram e de se aperfeiçoarem sob a influência
desses meios virtuosos e moralizados.
Dá-se
o mesmo com Espíritos já adiantados moralmente, e que, a exemplo dessa jovem de
Saint-Étienne, de que se falou no ano passado, se reencarnam em famílias
obscuras, entre Espíritos atrasados, a fim de mostrar-lhes o caminho do
progresso. Não esquecestes, tenho certeza, o anjo das asas brancas em que ela
pareceu transfigurar-se aos olhos dos que a tinham amado na Terra, quando estes
voltaram por sua vez ao mundo dos Espíritos. (Revista Espírita de junho
de 1861 - Conversas familiares de além-túmulo - Sra. Anaïs Gourdon).
ERASTO
(Na mesma sessão â Médium: Sra. Costel)
Venho
explicar-vos a importante questão da hereditariedade das virtudes e dos vícios
na raça humana. Essa transmissão faz que hesitem aqueles que não compreendem a
imensidade do dogma revelado pelo Espiritismo. Os mundos intermediários são
povoados por Espíritos à espera da prova da reencarnação ou se preparando de
novo, conforme o seu grau de adiantamento. Nesses viveiros da vida eterna, os
Espíritos são grupados e divididos em grandes tribos, uns adiantados e outros
atrasados em relação ao progresso, e cada um escolhe entre os grupos humanos,
aqueles que correspondem simpaticamente às suas faculdades adquiridas, as quais
progridem, mas não podem retrogradar.
O
Espírito que se reencarna escolhe o pai cujo exemplo fá-lo-á avançar na via
preferida e ele absorve, elevando-os ou enfraquecendo-os, os talentos daquele
que lhe deu a vida corpórea. Em ambos os casos, a conjunção simpática existe
anteriormente ao nascimento e a seguir é desenvolvida nas relações de família,
pela imitação e pelo hábito. Depois da hereditariedade familiar, meus amigos,
quero revelar-vos a origem da discordância que separa os indivíduos de uma mesma
raça, repentinamente ilustrada ou desonrada por um de seus membros que se tornou
estranho ao meio.
O
bruto vicioso que se encarnou num centro educado, e o Espírito luminoso que se
reencarna entre gente grosseira, obedecem ambos à misteriosa harmonia que
aproxima as partes divididas de um todo e faz a concordância entre o
infinitamente pequeno e a suprema grandeza.
O
Espírito culpado, apoiado nas virtudes adquiridas de seu procriador terreno,
espera por essas fortalecer-se. Se sucumbe ainda na prova, adquire pelo exemplo
o conhecimento do bem e volta à erraticidade menos carregado de ignorância e
melhor preparado para sustentar uma nova luta.
Os
Espíritos adiantados entreveem a glória de Jesus e anseiam por esgotar, depois
dele, o cálice da ardente caridade. Também como ele, querem guiar a Humanidade
para o objetivo sagrado do progresso e nascem nos baixos níveis sociais, onde se
debatem, acorrentados uns aos outros, contra a ignorância e o vício, dos quais
são alternativamente vencedores ou mártires.
Se
esta resposta não soluciona todas as vossas dúvidas, interrogai-me, meus
amigos.
SÃO LUÍS"
(Revista Espírita, Julho de 1862)