sábado, 18 de junho de 2016

"ESMOLA E CARIDADE" (Parte 2)

"Escusam-se muitos de não poderem ser caridosos, alegando precariedade
de bens, como se a caridade se reduzisse a. dar de comer aos famintos, dar de
beber aos sedentos, vestir os nus e proporcionar um teto aos desabrigados.
Além dessa caridade, de ordem material, outra existe — a moral, que não
implica o gasto de um centavo sequer e, não obstante, é a mais difícil de ser
praticada.
Exemplos? Eis alguns: Seríamos caridosos se, fazendo bom uso dê
nossas forças mentais, vibrássemos ou orássemos diariamente em favor de
quantos saibamos acharem-se enfermos, tristes ou oprimidos, sem excluir
aqueles que porventura se considerem nossos inimigos.
Seríamos caridosos se, em determinadas situações, nos fizéssemos
intencionalmente cegos para não vermos o sorriso desdenhoso ou o gesto
desprezivo de quem se julgue superior a nós.
Seríamos caridosos se, com sacrifício de nosso valioso tempo, fôssemos
capazes de ouvir, sem enfado, o infeliz que nos deseja confiar seus problemas
íntimos, embora sabendo de antemão nada podermos fazer por ele, senão
dirigir-lhe algumas palavras de carinho e solidariedade.
Seríamos caridosos se, ao revés, soubéssemos fazer-nos
momentâneamente surdos quando alguém, habituado a escarnecer de tudo e
de todos, nos atingisse com expressões irônicas ou zombeteiras.
Seríamos caridosos se, disciplinando nossa língua, só nos referíssemos ao
que existe de bom nos seres e nas coisas, jamais passando adiante notícias
que, mesmo sendo verdadeiras, só sirvam para conspurcar a honra ou abalar a
reputação alheia.
Seríamos caridosos se, embora as circunstâncias a tal nos induzissem,
não suspeitàssemoe mal de nossos semelhantes, abstendo-nos de expender
qualquer juízo apressado e temerário contra eles, mesmo entre os familiares.
Seríamos caridosos se, percebendo em nosso irmão um intento maligno, o
aconselhássemos a tempo, mostrando-lhe o erro e despersuadindo-o de o
levar a efeito.
Seríamos caridosos se, privando-nos, de vez em quando, do prazer de um
programa radiofônico ou de T. V. de nosso agrado, visitássemos pessoalmente
aqueles que, em leitos hospitalares ou de sua residência, curtem prolongada
doença e anseiam por um pouco de atenção e afeto.
Seríamos caridosos se, embora essa atitude pudesse prejudicar nosso
interesse pessoal, tomássemos, sempre, a defesa do fraco e do pobre, contra a
prepotência do forte e a usura do rico.
Seríamos caridosos se, mantendo permanentemente uma norma de
proceder sereno e otimista, procurássems criar em torno de nós uma atmosfera
de paz, tranqüilidade e bom humor.
Seríamos caridosos se, vez por outra, endereçássemos uma palavra de
aplauso e de estímulo às boas causas e não procurássemos, ao contrário,
matar a fé e o entusiasmo daqueles que nelas se acham empenhados.
Seríamos caridosos se deixássemos de postular qualquer benefício ou
vantagem, desde que verificássemos haver outros direitos mais legítimos a
serem atendidos em primeiro lugar.
Seríamos caridosos se, vendo triunfar aqueles cujos méritos sejam
inferiores aos nossos, não os invejássemos e nem lhes desejássemos mal.
Seríamos caridosos se não desdenhássemos nem evitássemos os de má
vida, se não temêssemos os salpicos de lama que os cobrem e lhes
estendêssemos a nossa mão amiga, ajudando-os a levantar-se e limpar-se.
Seríamos caridosos se, possuindo alguma parcela de poder, não nos
deixássemos tomar pela soberba, tratando, os pequeninos de condição,
sempre com doçura e urbanidade, ou, em situação inversa, soubéssemos
tolerar, sem ódio, as impertinências daqueles que ocupam melhores postos na
paisagem social.
Seríamos caridosos se, por sermos mais inteligentes, não nos irritássemos
com a inépcia daqueles que nos cercam ou nos servem.
Seríamos caridosos se não guardássemos ressentimento daqueles que
nos ofenderam ou prejudicaram, que feriram o nosso orgulho ou roubaram a
nossa felicidade, perdoando-lhes de coração.
Seríamos caridosos se reservássemos nosso rigor apenas para nós
mesmos, sendo pacientes e tolerantes com as fraquezas e imperfeiçôes
daqueles com os quais convivemos, no lar, na oficina de trabalho ou na
sociedade.
E assim, dezenas ou centenas de outras circunstâncias poderiam ainda ser
lembradas, em que, uma amizade sincera, um gesto fraterno ou uma simples
demonstração de simpatia, seriam expressões inequívocas da maior de todas
as virtudes.
Nós, porém, quase não nos apercebemos dessas oportunidades que se
nos apresentam, a todo instante, para fazermos a caridade.
Porquê?
É porque esse tipo de caridade não transpõe as fronteiras de nosso mundo
interior, não transparece, não chama a atenção, nem provoca glorificações.
Nós traímos, empregamos a violência, tratamos os outros com leviandade,
desconfiamos, fazemos comentários de má fé, compartilhamos do erro e da
fraude, mostramo-nos intolerantes, alimentamos ódios, praticamos vinganças,
fomentamos intrigas, espalhamos inquietações, desencorajamos iniciativas
nobres, regozijamo-nos com a impostura, prejudicamos interesses alheios,
exploramos os nossos semelhantes, tiranizamos subalternos e familiares,
desperdiçamos fortunas no vício e no luxo, transgredimos, enfim, todos os
preceitos da Caridade, e, quando cedemos algumas migalhas do que nos
sobra ou prestamos algum serviço, raras vezes agimos sob a inspiração do
amor ao próximo; via de regra fazemo-lo por mera ostentação, ou por amor a
nós mesmos, isto é, tendo em mira o recebimento de recompensas celestiais.
Quão longe estamos de possuir a verdadeira caridade!
Somos, ainda, demasiadamente egoístas e miseravelmente desprovidos
do espírito de renúncia para praticá-la...
Mister se faz, porém, que a. exercitemos, que aprendamos a dar ou
sacrificar algo de nós mesmos em benefício de nossos semelhantes, porque «a
caridade é o cumprimento da Lei”.

("As Leis Morais", Rodolfo Calligaris)

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