"Disse então Jesus estas palavras: – Graças te rendo, meu Pai, Senhor do Céu e
da Terra, por haveres ocultado estas coisas aos doutos e aos prudentes, e por as
teres revelado aos pequeninos." (MATEUS, 11:25.)
"Em certo dia, durante os
deveres assumidos com o exercício do aprendizado que me fora indispensável no
mundo invisível, para desenvolvimento do meu progresso pessoal, necessitei
visitar a Terra, onde sempre me fora dado observar tantas lágrimas crestando o
coração do meu próximo. Desci em vôo lento, ao acaso... e planei, atraído, de
certo, por afinidades especiais, sobre uma região pobre do Piemonte, nas
encostas nevadas dos Apeninos. (1)
Era uma aldeia de pobres camponeses, que
tiravam das entranhas do solo o sustento para os seus semelhantes, mais para
estes do que para si próprios, pois esses meus irmãos, almas heróicas, geradas,
como eu, da mesma Luz, eram resignados na sua pobreza e se conformavam com o
mínimo que lhes era indispensável.
Um travo de tristeza anuviou a satisfação
de que nos últimos tempos minhalma se alcandorava, à vista daquela aldeia onde
os problemas se multiplicavam, sem soluções compensadoras. Lembrei-me então dos
dias melancólicos da minha existência terrena, quando, palmilhando os gelos de
minha terra natal, eu peregrinava por aqui, por ali e acolá à procura das dores
alheias para que Deus, suavizando-as por meu intermédio, também a mim,
permitisse a misericórdia da suavização das minhas próprias dores, que não foram
poucas.
Entrei, agora, de palhoça em palhoça, visitei os camponeses, os
operários, os cavouqueiros, os pescadores. E a desolação crescia em minha alma,
porque verifiquei que o homem, tal como nos meus velhos tempos, antes de mais
nada, conservava-se sofredor, e assim se conservava por ignorar o próprio
destino imortal.
Mas... mais além, à beira de uma palhoça com vistas para a
cordilheira, um grupo de mulheres conversava amistosamente. À frente, a sombra
de um pinheiro tingia de penumbras o alpendre tosco da entrada, enfeitado de
jasmins e trepadeiras, ao passo que tílias floridas bordavam de tonalidades
suaves o terreno cultivado, a par de videiras tenras que tentavam
frutificar.
Que diriam entre si aquelas pobres camponesas?...
Seu mundo
era tão restrito, tão modestos os seus ideais, que não passavam do desejo da boa
saúde dos maridos e do crescimento dos filhos, que bem cedo deveriam marchar
para a lavoura, com o pai.
Aproximei-me :
Elas eram ruivas e brancas, de
faces rosadas e frescas, como legítimas italianas, volumosas em suas saias
berrantes e fartas, com alvos aventais e toucas típicas, que as tornavam
graciosas. Sim, que diriam?...
Detive-me a ouvi-las, como outrora, durante
meus passeios solitários, ao encontrar um e outro "mujik" (2), que vinham
solicitar a ajuda que nunca lhes pude plenamente conceder. E uma lágrima
deslizou de minha alma, a essa melancólica evocação.
Eis o que se
passava:
– Sim, Senhora Rafaela, conta à nossa Gertrudes o que te sucedeu
durante esta noite... para ver se ela deixará de também chorar a morte do seu
pequerrucho, que lá vai dois anos se foi para o bom Deus, sem que ela, a mãe, o
esqueça... Conta-lhe...
– Sim, Rafaela, não te faças rogada... Conta-nos
novamente o teu lindo sonho...
E Rafaela contou às vizinhas, pela décima vez,
naquela manhã de primavera, o sonho que tivera, tendo agora, porém, um ouvinte a
mais, invisível, do qual nenhuma delas se apercebia:
– Lembra-te, Gertrudes,
da minha Adda?... Morreu há seis meses, quando justamente completaria os três
anos de idade... e lhe iam sair os últimos queixais... Era tão viva e tão
levada, a minha filha...
– Pois sim, lembro-me!... Pois não fui eu que a
amamentei por ti, naqueles primeiros dias, quando a febre do leite te fazia
variar?... Era tão linda como o meu Giovanino, que também se foi... e sua irmã
de leite...
– Lembra-te do que tenho chorado e lamentado durante seis meses,
sem dar acordo de mim mesma, inconsolável pela ausência de minha Adda, sem ânimo
para o campo, sem comer, sem dormir, já sem crença em Deus, que me
levou?...
– Como não havia de me lembrar, ó Rafaela!... Então não sei que
assim mesmo tens feito?... Pois assim mesmo não te tenho visto, há seis
meses?...
– Pois, Gertrudes, esta noite sonhei – prosseguiu Rafaela –, sonhei
que fui convidada para uma festa onde somente crianças deveriam divertir-se.
Parece que a tal festa se realizaria pelos arredores do Céu, mais ou
menos...
Então, fui.
Era um lugar florido e bonito, e as crianças ali
dançavam e cantavam, alegrezinhas, entoando hinos, enquanto se arremessavam
punhados de pétalas de rosas brilhantes como estrelas... Traziam coroas de
flores luminosas às cabecinhas louras e asas luzentes como devem ser as dos
anjos que cortejam a Santa Mãe de Nosso Senhor Menino...
Embevecida, eu as
admirava, assistindo à festa com as mãos entrançadas, como se contemplasse anjos
do próprio Paraíso...
Mas, de súbito, que pensas que eu vejo?...
Adda! A
minha Addazinha!... Mas... triste, contundida e chorosa, asas molhadas, sem
bastante brilho para também participar do folguedo dos anjos... porque
encharcadas também as suas vestes, e como comparecendo ali clandestinamente, sem
se poder apresentar como seria devido numa festa de tal importância.
– Que
significa isto, minha filha? – perguntei-lhe eu, no cúmulo da estupefação. – Tu,
tão triste, quando eras alegrezinha, assim molhada e transida de frio, como se
te houveras afogado nas torrentes do nosso rio Pó... (3) Por que não te divertes
com os outros anjos, tu que eras o anjinho do meu coração, a doce bênção de
Nosso Pai em meu lar?...
– Não poderia, mãezinha!... – respondeu em lágrimas,
que me amarguraram.
– E por que não poderias, filhinha?... Porventura o bom
Deus não é complacente contigo?...
– O bom Deus é complacente comigo, sim,
mãezinha... Mas é que, na Eternidade, existem leis disciplinares
irrevogáveis...
– Francamente, não te entendo, minha filha! Se és um anjo...
Não tiveste sequer tempo de pecar... Porque leis severas contigo?...
– Não
vês, mamãe, como me encontro?... assim molhada, com minhas asas pesadas, minhas
roupagens sombrias, desguarnecidas de fulgurâncias, como não convém aos anjos
trazê-las?...
– Mas... por que estás assim, filhinha?... Que te aconteceu?...
Dize tudo a tua mãezinha... Quem sabe poderei ajudar-te em alguma coisa?...
–
Pois justamente és tu a culpada de tudo, mãezinha... Tanto choras e blasfemas
contra Deus, por minha causa, que me prendes ao teu lado, pela compaixão que me
inspiras com tua mágoa demasiada e o teu desespero... Tuas lágrimas molham
minhas asas, sombreiam minhas vestes, que devem ser de luz... E neste estado não
me será possível compartilhar das alegrias das outras crianças que habitam
felizes moradas dos Céus, nem alçar vôos pelo Infinito, onde deverão residir
aqueles que deixaram o mundo, para se tornarem ditosos...
Promete que não
mais hás de chorar e lamentar assim e serei feliz como o são estes que aqui vês,
porque poderei seguir, sem pesares, para o seio dAquele que criou leis que tu
desconheces, mas que mesmo assim deverás acatar porque são justas e muito
sábias... E um dia, mãezinha, aqui mesmo virás ter... para continuarmos a
felicidade momentaneamente interrompida...
– Ora, minha filha querida! –
respondi-lhe eu, sorridente e comovida – Deus seja louvado! Prometo que me
resignarei a essas leis, para não impedir teus vôos para o Céu com as minhas
revoltas... Orarei ao bom Deus, isso sim! para que sejas feliz, podendo volitar
em torno da Mãe Santíssima, como os demais anjos... e para que, quando possível,
venhas até mim, tal como neste momento, a fim de me esclareceres e orientares
sobre as coisas de Deus, que desconheço...
Quando Rafaela cessou de falar
tinha os olhos secos. Mas as outras mulheres choravam, enquanto eu, invisível a
todas elas, monologava com a alma enternecida:
– Oh, Deus dos simples e dos
pequeninos! Eu louvo a tua misericórdia, que concede aos pobres e ignorantes do
mundo revelações singelas, mas sublimes como esta, para que suas amarguras sejam
acalentadas, revelações que, no entanto, encerram profunda essência
filosófico-transcendental!...
Na Terra existe uma Ciência, revelada pelo Céu
aos homens, que traduz a essência desta história tão repetida entre todas as
mães que viram morrer os filhos pequeninos, Ciência capaz de explicá-la,
desdobrando-a em ensinamentos de alta significação espiritual. Tu conheces tal
Ciência, meu amigo! É a Doutrina que professas, a sacrossanta revelação daqueles
que habitam o mundo dos Espíritos. Difunde-a, pois, com todas as forças do teu
coração e do teu entendimento, para consolo do teu próximo, que precisa dela
para se tornar menos desgraçado.
("Ressurreição e Vida", Leão Tolstoi/ Yvonne A. Pereira)
(1) Piemonte – Região da
Itália. Situa-se entre os Alpes, o rio Tessino e os Apeninos. Capital: Turim.
Apeninos – Cordilheira de montes calcáreos, que se estende ao longo da península
Itálica. Altitude máxima, 2.921m. Grandes jazidas de mármore. (2) Mujik –
Camponês. (3) Rio da Itália. Atravessa o Piemonte e a Lombardia.
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