"La Discussion, jornal hebdomadário
político e financeiro impresso em Bruxelas, não é uma dessas folhas
levianas que visam, pelo fundo e pela forma, ao divertimento do público
frívolo. É um jornal sério, acreditado sobretudo no mundo financeiro e
que se acha no seu undécimo ano. Sob o título de O Espiritismo segundo os espíritas, o número de 31 de dezembro de 1865 traz o artigo seguinte:
“Espíritas e Espiritismo são
agora dois vocábulos muito conhecidos e frequentemente empregados,
embora fossem ignorados há poucos meses. Contudo, a maioria das pessoas
que deles se servem estão a perguntar o que exatamente significam, e
embora cada um faça essa pergunta a si mesmo, ninguém a expressa, pois
todos querem passar por conhecedores da chave que mata a charada.
“Algumas
vezes, entretanto, a curiosidade embaraça a ponto de verbalizar a
pergunta com os lábios e, satisfazendo ao vosso desejo, cada um vos
explica.
“Alguns
pretendem que o Espiritismo é o truque do armário dos irmãos Davenport;
outros afirmam que não passa da magia e da feitiçaria de outrora, que
querem reconduzir ao prestígio, sob um novo nome. Segundo as comadres de
todos os bairros, os espíritas têm conversas misteriosas com o diabo,
com o qual fizeram um compromisso prévio. Enfim, lendo-se os jornais,
fica-se sabendo que os espíritas são todos uns loucos ou, pelo menos,
vítimas de certos charlatões chamados médiuns. Esses charlatões
vêm, com ou sem armários, dar representações a quem lhas queira pagar, e
para mais valorizar suas trapaças, dizem agir sob a influência oculta
dos Espíritos de além-túmulo.
“Eis
o que eu tinha aprendido nestes últimos tempos. Tendo em vista o
desacordo dessas respostas, resolvi, para me esclarecer, ir ver o diabo,
ainda que me vencesse, ou me deixar enganar por um médium, ainda que
tivesse de perder a razão. Lembrei-me, então, muito a propósito, de um
amigo que suspeitava fosse espírita, e fui procurá-lo, a fim de que ele
me proporcionasse meios de satisfazer a minha curiosidade.
“Comuniquei-lhe
as diversas opiniões que havia recolhido, e expus o objetivo de minha
visita. Mas o amigo riu-se muito do que chamava a minha ingenuidade e me
deu, mais ou menos, a seguinte explicação:
‘O
Espiritismo não é, como creem vulgarmente, uma receita para fazer as
mesas dançarem ou para executar truques de escamoteação, e é um erro que
todos cometem querendo nele encontrar o maravilhoso.
‘O Espiritismo é uma ciência, ou melhor, uma filosofia espiritualista, que ensina a moral.
‘Não
é uma religião, porque que não tem dogmas nem culto, nem sacerdotes nem
artigos de fé. É mais que uma filosofia, porque sua doutrina é
estabelecida sobre a prova certa da imortalidade da alma. É para fornecer essa prova que os espíritas evocam os Espíritos de além-túmulo.
‘Os
médiuns são dotados de uma faculdade natural que os torna aptos a
servir de intermediários aos Espíritos e a produzir com eles os
fenômenos que passam por milagres ou por prestidigitação aos olhos de
quem quer que ignore a sua explicação. Mas a faculdade mediúnica não é
privilégio exclusivo de certos indivíduos. Ela é inerente à espécie
humana, embora cada um a possua em graus diversos, ou sob formas
diferentes.
‘Assim,
para quem conhece o Espiritismo, todas as maravilhas de que acusam essa
doutrina não passam de fenômenos de ordem física, isto é, de efeitos
cuja causa reside nas leis da Natureza.
‘Os
Espíritos, entretanto, não se comunicam com os vivos com o único
objetivo de lhes provar a sua existência: Foram eles que ditaram e
desenvolvem diariamente a filosofia espiritualista.
‘Como
toda filosofia, esta tem o seu sistema, que consiste na revelação das
leis que regem o Universo e na solução de um grande número de problemas
filosóficos ante os quais, até aqui, a Humanidade impotente foi
constrangida a inclinar-se.
‘É
assim que o Espiritismo demonstra, entre outras coisas, a natureza da
alma, seu destino e a causa de nossa existência aqui na Terra. Ele
desvenda o mistério da morte; dá a razão dos vícios e virtudes do homem;
diz o que são o homem, o mundo, o Universo. Enfim, faz o quadro da
harmonia universal, etc.
‘Este
sistema repousa sobre provas lógicas e irrefutáveis que têm, elas
próprias, por árbitro de sua verdade, fatos palpáveis e a mais pura
razão. Assim, em todas as teorias que ele expõe, age como a Ciência e
não adianta um ponto senão quando o precedente esteja completamente
certificado. Assim, o Espiritismo não impõe a confiança, porque, para
ser aceito, não precisa senão da autoridade do bom-senso.
‘Este sistema, uma vez estabelecido, dele se deduz, como consequência imediata, um ensinamento moral.
‘Essa
moral não é senão a moral cristã, a moral que está escrita no coração
de todo ser humano; e é a de todas as religiões e de todas as
filosofias, porque pertence a todos os homens. Mas, desvinculada de todo
fanatismo, de toda superstição, de todo espírito de seita ou de escola,
resplandece em toda a sua pureza.
‘É
nessa pureza que ela haure toda a sua grandeza e toda a sua beleza, de
modo que é a primeira vez que a moral nos aparece revestida de um brilho
tão majestoso e tão esplêndido.
‘O
objetivo de toda moral é ser praticada; mas esta, sobretudo, tem essa
condição como absoluta, porque ela denomina espíritas não os que aceitam
os seus preceitos, mas apenas os que põem os seus preceitos em ação.
‘Direi
quais são as suas doutrinas? Aqui não pretendo ensinar, e o enunciado
das máximas conduzir-me-ia, necessariamente, ao seu desenvolvimento.
‘Direi
apenas que a moral espírita nos ensina a suportar a desgraça sem
desprezá-la; a gozar da felicidade sem a ela nos apegarmos. Direi que
ela nos rebaixa sem nos humilhar, como nos eleva sem nos ensoberbecer;
coloca-nos acima dos interesses materiais, sem por isto estigmatizá-los
com o aviltamento, porque nos ensina, ao contrário, que todas as
vantagens com que somos favorecidos são outras tantas forças que nos são
confiadas e por cujo emprego somos responsáveis para conosco e para com
os outros.
‘Vem,
então, a necessidade de especificar essa responsabilidade, as penas
ligadas à infração do dever e as recompensas de que desfrutam os que o
cumprem. Mas também aí, as asserções não são tiradas senão dos fatos e
podem verificar-se até a perfeita convicção.
‘Tal
é esta filosofia, onde tudo é grande porque tudo é simples; onde nada é
obscuro, porque tudo é provado; onde tudo é simpático, porque cada
questão interessa intimamente a cada um de nós.
‘Tal
é esta ciência que, projetando uma viva luz sobre as trevas da razão,
de repente desvenda os mistérios que julgávamos impenetráveis e recua
até o infinito o horizonte da inteligência.
‘Tal
é esta doutrina que pretende tornar felizes, melhorando-os, todos os
que concordam em segui-la, e que, enfim, abre à Humanidade uma via
segura para o progresso moral.
‘Tal é, finalmente, a loucura que contagiou os espíritas e a feitiçaria que eles praticam.’
“Assim,
sorrindo, terminou o meu amigo, que, a meu pedido, permitiu-me com ele
visitar algumas reuniões espíritas, onde as experiências se aliam aos
ensinamentos.
“Voltando
para casa, recordei o que eu havia dito, em concerto com todo mundo,
contra o Espiritismo, antes de conhecer pelo menos o significado desse
vocábulo, e essa lembrança encheu-me de amarga confusão.
“Então
pensei que, a despeito dos severos desmentidos infringidos ao orgulho
humano pelas descobertas da Ciência moderna, quase não sonhamos, na
época de progresso em que nos encontramos, em tirar proveito dos
ensinamentos da experiência; e que estas palavras escritas por Pascal há
duzentos anos, ainda por muitos séculos serão de rigorosa exatidão: ‘É
uma doença peculiar ao homem crer que possui a verdade diretamente; e é
por isto que ele está sempre disposto a negar aquilo que para ele é
incompreensível.”
“A. BRIQUEL.”
Como
se vê, o autor deste artigo quis apresentar o Espiritismo sob sua
verdadeira luz, despido das fantasias com que o veste a crítica, numa
palavra, tal qual o admitem os espíritas, e sentimo-nos feliz ao dizer
que o conseguiu perfeitamente. Com efeito, é impossível resumir a
questão de maneira mais clara e precisa. Devemos, também, felicitar a
direção do jornal que, com aquele espírito de imparcialidade que
gostaríamos de encontrar em todos aqueles que fazem profissão de
liberalismo e posam como apóstolos da liberdade de pensar, acolheu uma
profissão de fé tão explícita.
Ademais,
suas intenções em relação ao Espiritismo estão nitidamente formuladas
no artigo seguinte, publicado no número de 28 de janeiro:
Como ouvimos falar do Espiritismo
“O
artigo publicado em nosso número de 31 de dezembro, sobre o
Espiritismo, provocou numerosas perguntas, querendo saber se nos
propomos tratar posteriormente deste assunto e se nos transformamos em
seu órgão. A fim de evitar equívocos, torna-se necessária uma resposta
categórica. Ei-la:
“O Discussion é
um jornal aberto a todas as ideias progressistas. Ora, o progresso não
pode ser feito senão por ideias novas que de vez em quando vêm mudar o
curso das ideias estabelecidas. Repeli-las porque destroem as que foram
acalentadas, é, aos nossos olhos, faltar à lógica. Sem
nos tornarmos apologistas de todas as elucubrações do espírito humano, o
que também não seria mais racional, consideramos como um dever de
imparcialidade pôr o público em condições de julgá-las. Para tanto,
basta apresentá-las tais quais são, sem tomar, prematuramente, partido
pró ou contra, porque, se forem falsas, não será a nossa adesão que as
tornará justas, e se forem justas, nossa desaprovação não as tornará
falsas. Em tudo, é a opinião pública e o futuro que pronunciam a última
sentença. Mas, para apreciar o lado forte e o fraco de uma ideia, é
preciso conhecê-la em sua essência, e não tal qual a apresentam os
interessados em combatê-la, isto é, o mais das vezes truncada e
desfigurada. Se, pois, expomos os princípios de uma teoria nova, não
queremos que seus autores ou seus partidários possam censurar-nos por
lhes fazer dizer o contrário do que dizem. Agir assim não é assumir a
sua responsabilidade: é dizer o que é e reservar a opinião de todo
mundo. Nós colocamos a ideia em evidência em toda a sua verdade. Se ela
for boa, fará o seu caminho e nós lhe teremos aberto a porta; se for má,
teremos fornecido o meio de ser julgada com conhecimento de causa.
“É
assim que procederemos em relação ao Espiritismo. Seja qual for
a maneira de ver a seu respeito, ninguém pode dissimular a extensão que
ele tomou em poucas anos. Pelo número e pela qualidade de seus
partidários, ele conquistou uma posição entre as opiniões aceitas. As
tempestades que ele desencadeia, o encarniçamento com que o combatem em
certo meio, são, para os menos clarividentes, o indício de que ele
encerra algo de sério, porque emociona tanta gente. Pensem dele o que
quiserem pensar, é incontestavelmente uma das grandes questões na ordem
do dia. Assim, não seríamos consequentes com o nosso programa se o
deixássemos passar em silêncio. Nossos leitores têm direito de pedir que
lhes demos a conhecer o que é essa doutrina que provoca tão grande
ruído. Nosso interesse está em satisfazê-los, e nosso dever é fazê-lo
com imparcialidade. Pouco lhes importa nossa opinião pessoal sobre a
coisa; o que esperam de nós é um relato exato dos fatos e das atitudes
de seus partidários para que possam formar sua própria opinião.
“Como
nos conduziremos no caso? É muito simples: iremos à própria fonte;
faremos pelo Espiritismo o que fazemos pelas questões de política, de
finanças, de ciência, de arte ou de literatura, isto é, disto
encarregaremos homens especiais. As questões de Espiritismo serão, pois,
tratadas por espíritas, como as de arquitetura por arquitetos, a fim de
que não nos qualifiquem de cegos raciocinando sobre as cores e que não
nos apliquem as palavras de Fígaro: ‘Precisavam de um calculista e
tomaram um dançarino.’
“Em suma, o Discussion não
se apresenta como órgão nem apóstolo do Espiritismo; abre-lhe suas
colunas, como a todas as ideias novas, sem pretender impor essa opinião
aos seus leitores, sempre livres de a controlar, aceitar ou rejeitar.
Ele deixa aos seus redatores especiais toda liberdade de discutir os
princípios, pelo que eles assumem pessoalmente a responsabilidade. Mas o
que, no interesse de sua própria dignidade, ele repelirá sempre, é a
polêmica agressiva e pessoal.”
("Revista Espírita", Allan Kardec, Fevereiro 1866)
Sem comentários:
Enviar um comentário