sábado, 23 de setembro de 2017

"PASSIVIDADE"



"No caso do centro, no qual a moça tentava integrar-se para
participar das tarefas coletivas ali desenvolvidas, havia um rígido
padrão de comportamento mediúnico. Nada da elasticidade
recomendada por Boddington e que constitui um dos próprios
ingredientes do fenômeno mediúnico em si, de vez que cada
médium tem suas peculiaridades, precisamente por ser uma personalidade autônoma. Sem nenhuma experiência de trabalho
em conjunto, a nossa jovem entrou assim para um grupo no qual
predominavam muitas ‘regras’ inibidoras.


Nas sessões ditas de desobsessão, exigia o padrão ali adotado
que ela ‘desse passividade’ exatamente como os demais médiuns
treinados pela casa: imóvel, olhos fechados, mãos juntas e abandonadas tranquilamente sobre a mesa. Nenhum gesto era permitido durante a manifestação, nenhuma palavra em tom mais
alto, nenhuma forma de movimentação do corpo, dos membros
ou da cabeça.


Acontece que a mediunidade da nossa jovem tinha seus mé­
todos operacionais próprios, o que vale dizer: eram diferentes
dos que ah se praticavam. Embora disciplinada, sem manifesta­
ções ruidosas ou palavras descontroladas, ela gesticulava moderadamente e mantinha os olhos abertos, dando enfim expressão
e naturalidade às suas manifestações.


Agia acertadamente a meu ver, permitindo que o espírito manifestante
pudesse expressar-se convenientemente, dizer enfim
ao que veio e expor sua situação a fim de que pudesse ser atendido
ou, pelo menos, compreendido nos seus propósitos. Se ele vinha
indignado por alguma razão - e isto é quase que a norma em trabalhos
dessa natureza -, como obrigá-lo a falar serenamente, com
a voz educada, em tom frio e controlado ? Somos nós, encarnados,
capazes de tal proeza? Não elevamos a voz e mudamos de tom
nos momentos de irritação e impaciência? Como exigir procedimento
diferente do manifestante e do médium? Afinal de contas,
se a manifestação ficar contida na rigidez de tais' parâmetros, acaba
inibida e se torna inexpressiva, quando não inautêntica, de tão
deformada. Em tais situações, é como se o médium ficasse na posição
de mero assistente de uma cena de exaltação e a descrevesse
friamente, em voz monótona e emocionalmente distante dos
problemas que lhe são trazidos. E preciso considerar, no entanto,
que ali está uma pessoa angustiada por pressões íntimas das mais
graves e aflitivas, muitas vezes em real estado de desespero, que
vem em busca de socorro para seus problemas, ainda que não o
admita conscientemente. Não é uma vaga e despersonalizada entidade,
uma simples abstração, mas um espírito que se manifesta.


É um ser humano, vivo, sofrido, desarvorado, que está precisando
falar com alguém que o ouça, que sinta seu problema pessoal, que
o ajude a sair da crise em que mergulhou, que partilhe com ele
suas dores, que lhe proporcione, por alguns momentos, o abrigo
de um coração fraterno. O médium frio e com todos os seus freios
aplicados à manifestação não consegue transmitir a angústia que ,<
vai naquela alma. E um bloco de gelo através do qual não circulam
as emoções do manifestante, a pungência de seu apelo, a ânsia
que ele experimenta em busca de amor e compreensão. Nenhum
problema é maior, naquele instante, para o manifestante
do que o seu, nenhuma dor mais aguda do que a sua. Dizíamos há
pouco que a médium permitia que o manifestante se expressasse
a seu modo, mas, a rigor, ela simplesmente não sabia trabalhar de
outra maneira. A entidade parecia assumir seus comandos mentais
e utilizar-se, com naturalidade, de seu corpo físico. Se havia
alguma ação inibidora ou controladora da parte da médium, era
em nível de consciência extrafísica. E, certamente, era isso que se
dava, pois nunca houve qualquer distúrbio ou excesso nas manifestações que ocorriam por sua intermediação.


No entanto, o dirigente exigia que o médium transmitisse
tudo na rígida postura de um robô, que leva a palavra de um lado
para outro, mas não admite que se filtrem, também, as emoções
que elas contêm e que as impulsionam.

Quando isso ocorre, o que chega ao dirigente ou doutrinador
não é aquilo que partiu do manifestante e, sim, aversão pasteurizada
e impessoal que o médium lhe transmitiu, como se fosse nm
mero  telefone. O espírito nem consegue sentir, no ser
que utiliza como instrumento, um pouco de emparia, de solidariedade,
de fraternidade, de emoção participante, de calor humano.

É nisso que resulta a excessiva e tão decantada passividade...
E para esse tipo de passividade nossa jovem não estava preparada.
Daí os problemas com os métodos da casa e, obviamente,
com os dirigentes do trabalho."

"Diversidade dos Carismas", Hermínio Miranda

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