"Não alcançara, é certo, nenhum dos seus propósitos iniciais,
mas, ao cabo de um dia inteiro de expectativa e obstinação, conseguira, pelo menos, sair dali com um tímido raio de esperança
materializado na carta que, como chave mágica, deveria abrir
uma porta e pela qual ela esperava penetrar naquele universo diferente
e um tanto secreto, onde suas faculdades seriam, afinal,
cultivadas e postas a serviço de uma causa nobre.
Na segunda-feira seguinte, à noitinha, partiu em busca do endereço
indicado. Entregou a carta ao seu destinatário, que a leu
e mandou-a sentar-se e assistir aos trabalhos da noite, que aliás
não eram de natureza mediúnica, mas uma palestra a ser proferida
por um homem que ela conhecia apenas de nome.
Muitos problemas teria ali, na difícil fase de adaptação que se
seguiria, mas isto ainda era futuro, impenetrável até mesmo às
suas faculdades premonitórias.
Aquela noite, contudo, ficou marcada para sempre em sua
memória por um verdadeiro sismo emocional, que a colocaria
em estado de intensa agitação íntima e lhe deixaria uma sequela
de muitos conflitos. E que, no orador da noite, ela identificou a
figura central de suas vidências e sonhos, durante os quais çenasj
emocionantes eram revividas com toda a intensa carga emocional
que nelas se depositara. Era ele o homem amado do passado,
companheiro de muitas vidas, de felicidade, algumas, de frustrações
e de tormentos, outras. Naquela altura, porém, estava de
partida para os Estados Unidos, para onde seguiu, pouco depois,
em viagem de estudos. Somente ao retornar, meses depois, voltou
a procurar o centro que lhe fora indicado sob circunstâncias tão
complexas para ser orientada no trabalho que esperava realizar.
Longe de ter chegado ao termo das suas dificuldades - disto
ela sabería mais tarde -, elas apenas começavam. Se lhe fora exigida
uma cota tão elevada de tenacidade e decisão apenas para
que lhe indicassem um caminho, seria agora necessário acrescentar
paciência e até humilde resignação à sua obstinação em
servir da maneira adequada à causa que desejava adotar.
É certo que o centro, ao qual fora encaminhada, dispunha de
boa estrutura administrativa, desempenhava importantes tarefas
de natureza social, doutrinária e mediúnica. E como era de
se esperar, desenvolvera severos padrões de disciplina e de metodologia para cada setor de atividade, o que é perfeitamente
compreensível e até desejável. Como realizar um trabalho sério
numa comunidade movimentada e bem frequentada sem regimentos
adequados e normas apropriadas de procedimento?
Cada um tem de saber o que deve fazer e precisa dar conta da
parte que lhe toca no conjunto.
O problema é que a tarefa mediúnica tem peculiaridades que
não se deixam enquadrar na rigidez de certos esquemas inibidores.
Claro que seu exercício precisa obedecer a uma disciplina
operacional suficientemente severa para coibir desvios e ficar ao
abrigo de influências negativas próprias do médium ou provocadas
por terceiros. Mesmo nos limites de tal rigidez, é necessário
deixar algum espaço para que cada médium possa movimentar
seus recursos e faculdades pessoais, bem como expressar, de maneira
adequada, a personalidade do eventual comunicante desencarnado.
Sob esse aspecto, quase se poderia dizer que não há
mediunidade, e sim médiuns.
A mediunidade é a expressão da sensibilidade do médium,
seu instrumento de trabalho, e, como faculdade humana, guarda
características pessoais, como o modo de caminhar, o tom da
voz, a impressão digital, o feitio e ordenação da letra, o temperamento
de cada um. Precisa ser disciplinada sem ser deformada,
respeitando-se o contexto da personalidade humana no qual ela
ocorre. É desastroso tentar impor condições inaceitáveis às suas
manifestações.
Esse equívoco de abordagem ocorre com grande parte dos
cientistas que em suas pesquisas procuram impor à fenomenologia
psíquica em geral, e à mediunidade em particular, padrões
e metodologia de trabalho totalmente inadequados, que na
maioria das vezes frustram o processo de observação e produzem
resultados insatisfatórios. Quem se dispõe a trabalhar com
fenômenos produzidos pelo psiquismo humano deve se preparar
para respeitar as regras do jogo, decidindo, antes, que tipo de
metodologia é aplicável ao estudo que pretende realizar. Se não
existe, precisará criá-la; e antes de experimentar os fenômenos
em si, testar a própria metodologia desenvolvida para a pesquisa.
Isso porque se torna imperioso deixar espaço e condições para
que o fenômeno se produza tão espontaneamente quanto possí
vel, ainda que sob condições de controle observacional. O cientista,
tanto quanto o dirigente de trabalhos mediúnicos, deve ser
um bom observador, dotado de espírito crítico alertado, e ter o
bom-senso de interferir o mínimo possível - apenas o suficiente
para ordenar a sequência de tarefas e coordenar as atividades
que se desenrolam sob suas vistas. Deve, portanto, ser um observador
participante, certo, mas nunca inibidor., pois ele está all
precisamente para fazer com que as coisas aconteçam e não para _
impedi-las ou forçá-las a ocorrerem da maneira exata pela qual
ele entende que devam ocorrer. „
Não é muito diferente desta a maneira de pensar de André
Luiz, expressa em "Evolução em dois mundos", (Xavier, Francisco
C./Luiz, André 1973) onde se lê:
"Eminentes fisiologistas e pesquisadores de laboratório
procuraram fixar mediunidades e médiuns a nomenclaturas
e conceitos de ciência metapsíquica; entretanto o problema,
como todos os problemas humanos, é mais profundo, porque
a mediunidade jaz adstrita à própria vida, não existindo, por
isso mesmo, dois médiuns iguais, não obstante a semelhança no
campo das impressões..." (Os destaques são meus)
Logo a seguir, adverte André Luiz que até mesmo ‘espiritualistas
distintos’, que se julgam autorizados a apelar para os riscos
da mediunidade - a fim de impedir-lhe a eclosão e, por conseguinte,
os serviços que pode prestar - estão sendo influenciados
por via mediúnica, traduzindo “interpretações particulares de
inteligências desencarnadas que os assistem”. Ou seja, estão atuando
como inconscientes joguetes de vontades estranhas à sua.
Os médiuns são sensíveis não apenas aos seres desencarnados,
mas também às pressões e sentimentos, mesmo não expressos,
das pessoas encarnadas que os cercam durante o trabalho. Harry
Boddington (The university o f spiritualism), ao qual estaremos
recorrendo com alguma frequência neste estudo, acha até que os
médiuns são mais sensíveis às pressões dos encarnados do que às
dos desencarnados.
“Extrema elasticidade” - escreve o competente autor inglês
- “deve ser adotada na aplicação de todas as teorias relativas aos
fenômenos psíquicos.”
Isto não quer dizer, obviamente, que o médium possa e deva fazer
ou permitir que se faça com ele tudo o que vier à sua cabeça ou
à do manifestante, mas é preciso garantir condição suficiente para
que o fenômeno ocorra dentro da dinâmica que lhe é própria.
Esse princípio é válido para qualquer grupamento de pessoas,
até mesmo quando reunidas para finalidades meramente sociais
ou de trabalho material, estudo, debates, ou o que seja. Pessoas
agressivas, amarguradas, mal humoradas, pouco educadas causam
transtornos em qualquer reunião, o que não ocorre quando
os componentes de um grupo se harmonizam,
respeitam-se mutuamente e debatem os problemas com serenidade e bom-senso, ainda que divergindo neste ou naquele aspecto."
"Diversidade dos Carismas", Hermínio Miranda